A I-NOME-NADA essência da Linguagem



 Posfácio escrito por:

Antônio Máximo Ferraz
Doutor em Ciência da Literatura pela UFRJ
Coordenador do Núcleo Interdisciplinar Kairós
– Pensamento da Arte e da Linguagem (NIK/UFPA)




A palavra paira na cegueira... a palavra, animal da noite submersa.
(Harley Dolzane)


            Em outras épocas, a linguagem foi compreendida como a dimensão a partir da qual surge o mundo. Não é à toa que na Bíblia – um dos textos que compõem, ao lado da Ilíada e da Odisséia, o tripé em que se assentam as origens da identidade ocidental – lê-se logo no pórtico: “No princípio era o Verbo”. Para todos os povos que construíram o significado das coisas no registro mitopoético, a palavra é compreendida como uma dádiva ofertada ao homem – uma dádiva sagrada, divina, que, como tal, o excede.
            Em nosso tempo, no entanto, prevalece uma concepção subjetivista e antropocêntrica da linguagem. Na era da construção técnico-científica do real (das coisas), em que nos achamos imersos, o homem se crê a medida da linguagem, supondo-se capaz de defini-la com a sua régua. A linguagem passa a ser tomada como “objeto de análise”, a ser determinado pelo homem. Se ele assim o faz, é porque se converteu em sujeito – aquele que, dotado da metodologia científica para se dirigir às coisas, objetualiza-as. A linguagem se dessacraliza, perde sua aura divina, e se torna um objeto em meio a outros objetos.
            A linguística oferece os parâmetros dessa abordagem, com a sua “análise do discurso”, à procura das determinações ideológicas das práticas discursivas. O enquadramento conceitual dessa ciência é o de que a palavra é signo, composto de um conteúdo intelectual (o significado) e uma materialidade (o significante). E raramente se desconfia que na separação da palavra em significado e significante se projeta, só que por via do esquecimento das origens, a ontologia antiga. O que se esquece, no entanto, é o que se faz mais presente, pois passa a atuar sem que se perceba.
            Na concepção segundo a qual a palavra é signo composto de significado e significante se faz presente a diacosmese platônica entre mundo inteligível e sensível, assim como o aristotelismo, com suas causas material e formal. No entanto, uma coisa são Platão e Aristóteles, pensadores que mergulham radicalmente nas questões, outra são platonismo e aristotelismo – a conversão do pensamento em doutrinas, repetidas por escolas e epígonos, e que terminaram se espraiando no modo como percebemos as coisas, inclusive a linguagem. O maior legado de um pensador, no entanto, não é o que ele pensou, mas o que ele não pensou, pois é a partir do ainda não-pensado que se dá o a-pensar. A teoria das causas aristotélicas jamais se aplicou à linguagem, mas ao que é produzido pelo homem e pela physis, traduzida habitualmente por natureza, e que preferimos chamar de o real, a totalidade das coisas. Forma e conteúdo, inteligível e sensível – pares dicotômicos que constituem matrizes da compreensão da palavra como signo cindido entre significado e significante – atuam como um cerrado esquema conceitual, do qual é muito difícil escapar. Quem ousaria questionar o que parece ser tão evidente? E, no entanto, permanece o a-pensar no que já se pensou.
            Alberto Caeiro afirma que “o Universo não é uma ideia minha, a minha ideia do Universo é que é uma ideia minha”. Parodiando o mestre do teatro pessoano – mestre não de conceitos, mas da abertura para as questões que, como tais, jamais se deixam definir –, diremos: “a linguagem não é uma ideia da linguística, a ideia que a linguística tem da linguagem é que é uma ideia da linguística”. Ela tem, evidentemente, a sua validade, só que no seu campo, que é o da abordagem científica da linguagem. Uma ciência da linguagem ainda não é, entretanto, uma filosofia da linguagem. Como toda ciência, a linguística constitui um recorte fragmentário da totalidade das coisas, e, por isso mesmo, não pode atingir a essência da linguagem. Isto está fora de seu âmbito de questionamento. Um físico não se interroga sobre a essência das coisas: ele as enquadra nas teorias físicas, vez que o que é próprio da ciência é a estruturação prévia do real em teorias. Caso se pusesse a pensar sobre a essência das coisas em sua totalidade, o físico deixaria de ser físico, deixaria de ser cientista, e já estaria fazendo filosofia. Como filósofo, ele não descreveria apenas como é a coisa, com o intuito de prevê-la e controlá-la, assim como o faz a ciência. Ele se questionaria o que é a coisa, em sua essência.
            Na nossa época, quando se interroga o que é a linguagem, a resposta que de pronto se ouve é: a linguagem é um instrumento de comunicação. Há muito de não-pensado nessa resposta. E, até mesmo porque é uma quase unanimidade, já é de se desconfiar.
            Um instrumento é, por exemplo, uma bicicleta. Com ela, nos deslocamos de um lugar para outro. A essência de um instrumento é a sua serventia. Uma bicicleta que, de tão desgastada, não mais sirva, perde a sua utilidade como instrumento de deslocação, e é jogada fora, enviada para o ferro-velho. Diz-se, então, que ela perdeu a sua serventia. Sem serventia, um instrumento decai como tal. Mas será que a essência da linguagem é a mesma da bicicleta? Será que ambas são instrumentos, com a diferença de que uma serve para se deslocar e a outra para se comunicar? Se esse não é o caso, qual a essência da linguagem? Se quisermos saber o que a linguagem essencialmente é, melhor faremos em interrogar a ciência linguística ou o poema, que é o lugar em que a linguagem acontece, independente de qualquer teoria ou conceito prévio? Escutemos os versos de Harley Dolzane, no poema dedicado a M.M. e V.F.C.:

úmida manhã na promessa, a crespa floresta do porvir, a negra e sonora, mas... silente
teu luar escondido, a ostra, a dura palavra incrustada na boca rugosa do nada, assim:
a língua bulindo, bulindo e a serpente vindo brotar na árvore dos Dons...

            O que estes versos comunicam? A linguagem, aqui, é um instrumento de comunicação? Se comunicar, como o termo diz, é tornar comum, a rigor eles não comunicam nada. Pois, apesar de nenhuma palavra ser estranha ao vocabulário de uso mais comum, elas não estão em estado de comunicação, mas de evocação. Apesar de todas as palavras serem conhecidas, de comum conhecimento dos falantes da língua, trata-se de um dizer grávido de silêncio, de velamento de sentido. Lendo tais versos, temos a impressão, de fato, de sair do uso ordinário e comum da linguagem, para ingressar em uma esfera extra-ordinária, fora da ordinariedade. Ao leitor que jogue seriamente o jogo que o poema propõe – o jogo do Poético –, é exigido um interrogar radical pelo sentido. O sentido não só do poema, mas, antes de tudo, de seu próprio horizonte existencial. E isto supondo que a leitura não seja apenas um deleite estético, e, sim, o ato de se deixar afetar existencialmente pelo que no poema se questiona. O que o poema evoca? Escutemo-lo, de perto.
            O poema fala de uma promessa que vem acompanhada de uma úmida manhã. É a promessa que fecunda, com a sua umidade, a floresta do porvir. Porvir não é o mesmo que futuro. Futuro é o que está depois do presente, assim como o passado é o que está antes. O tempo passa, e o presente deixa de ser, com o futuro se convertendo em presente, e este em passado. O futuro se depaupera, é devorado pelo presente. O porvir, ao contrário, é o que virá ao encontro do presente, pois ele está por vir. O que, no poema, está por vir é a crespa floresta, com tudo o que ela guarda. Não se trata de um futuro que deixará de ser quando se fizer presente, imediatamente convertendo-se em passado. Trata-se do que ainda está velado, e que virá ao encontro: a crespa floresta.
            A floresta é crespa, velada: nela, as coisas mal se discernem. A floresta é negra porque, estando no porvir, ainda é desconhecida dos homens. Mas é também sonora, porque nela estão guardadas as coisas, ainda indistintas, que, no porvir, virão à luz. E, no entanto, a floresta é paradoxalmente silente, pois, guardada no velamento, antes da clareira que nela se desvelará, ainda é uma promessa.
            A floresta não se iluminará pela luz sol, e, sim, pelo luar escondido. Em sendo a luz da lua, e não a do sol, ela abriga, no seu cerne, a escuridão. Daí a imagem da ostra que esconde, em seu escuro interior, a dura palavra incrustada na boca rugosa do nada. Mas não se trata do nada do esvaziamento, da aniquilação, do niilismo. A boca rugosa do nada é, contrariamente, o que evoca o que ainda não é, e que virá a ser, o que virá ao encontro do homem, o que está por vir.
            A língua, então, articulando a linguagem, é a serpente que, bulindo, evoca, na palavra, a brotação da Árvore dos Dons. A Árvore dos Dons, com seu florescer, faz florescer a inteira floresta, trazendo à luz o porvir que ela, em sua escuridão, abrigava.
            Note-se que não é o homem quem irá ao encontro do que na negra floresta se vela: é o que nela se vela que virá a seu encontro, pois é ela que está por vir. O homem evoca, na linguagem, a partir da boca rugosa do nada, a Árvore dos Dons, cujos presentes são as palavras. Como são dons, não foi o homem quem os deu a si próprio. O homem é com eles presenteado. Ele apenas recebe as palavras enquanto dons. Um presente que se recebe deve ser acolhido, guardado com desvelo e retribuído. Ao acolher, guardar e retribuir os dons que recebe, o homem agradece o dom com que é presenteado.
            As palavras são, assim, presentes ofertados ao homem pela Árvore dos Dons. As palavras são sempre palavras de uma língua, e estas jamais esgotam o manancial originário da linguagem, de onde brotam as diferentes línguas. Ninguém fala a linguagem portuguesa, a linguagem alemã, a linguagem francesa. Falam-se a língua portuguesa, a língua alemã, a língua francesa. A linguagem, aquilo que se vela e silencia – a boca rugosa do nada – na fala de cada diferente língua, é a própria Árvore dos Dons.
            Esta é apenas uma interpretação dos versos de um poema, não pretende ser a verdade do poema no sentido do oposto ao falso. É uma interpretação verdadeira no sentido da alétheia, palavra que, em grego, significa verdade, mas em um sentido bem diferente do usual. Alétheia não se contrapõe ao falso. Ela é o desvelar que guarda, em seu seio, no silêncio, o que sempre permanece velado. O percurso que fizemos pelo significado do poema jamais conseguirá definir o nele se vela. E isso não é uma insuficiência. Ao contrário, a riqueza de um autêntico poema é que ele jamais se deixa apreender em conceitos. Édipo Rei, de Sófocles, é interpretado há 2.500 anos, mas, como texto grávido de silêncio, não pode ser definido, apenas ter o seu sentido percorrido.
            Mas onde estamos com a essência da linguagem? Será que nos perdemos, ao interpretar o poema, da questão que nos acossava? O que os versos do poema de Harley Dolzane podem nos dizer a respeito da essência da linguagem? Ora, o poema já o disse, para quem se dispuser a escutá-lo: a palavra é um dom ofertado pela linguagem ao homem. Mas a linguagem, ela mesma, é, essencialmente, silêncio, em que se pronuncia a boca rugosa do nada. Na evocação da palavra, o homem convoca o que ainda está por vir. O que está por vir é o momento em que o homem, sabendo acolher, guardar com desvelo e retribuir o dom da linguagem enquanto silêncio, não a reduzirá a mero instrumento de comunicação. O que está por vir é o momento em que cada um, percebendo-se como um dom da linguagem, perceberá que o sentido das coisas e de si próprio se realiza no exercício da escuta desse silêncio essencial.
            O homem é um dom da linguagem. Ela é sagrada, não no sentido de qualquer religião institucionalizada, mas no de ser um dom que, como tal, excede o homem, a ele cabendo acolhê-lo, guardá-lo e retribuí-lo. O homem jamais poderá definir a linguagem, muito menos como um instrumento, porque ele está dentro dela, jamais fora, como se ela fosse um objeto à disposição do afã metodológico e instrumentalizador do sujeito. A linguagem acontece, se dá, se manifesta a partir do silêncio que ela essencialmente é, e se destina no homem para que ele, a partir da ação originária da própria linguagem, habite poeticamente o real, no vigor da poiésis, como instância originária da construção de sentido.
            Na interpretação dos versos de um poema grávido de profundo pensamento, não obtivemos um conceito geral da essência da linguagem. Tivemos, isso sim, uma experiência concreta do silêncio que ela essencialmente é. Nenhuma análise do discurso poderia alcançar o silêncio que o poema nos faz experenciar. Nele não há uma ideologia – uma ideia prévia sobre as coisas –, de qualquer espécie de coloração. O silêncio não tem ideologia. No poema, o silêncio da linguagem acontece. As palavras do poema evocam a esfera I-NOME-NADA da linguagem.
            O livro que o leitor tem em mãos, do poeta Harley Dolzane, constitui um dos grandes acontecimentos, inclusive no sentido do acontecer da linguagem, da poesia brasileira dos últimos anos. Vivemos em uma época infestada de poetas que confundem novidade técnico-formal com originalidade. A originalidade só é original se remete ao originário, à instância a partir da qual as coisas se originam. Como disse Camões, “cantando espalharei por toda parte, se a tanto me ajudar o engenho e arte”. Sobram engenhosidade e inovações, mas a arte só se dá quando, manifestando-se na obra, desvela as questões dentro das quais o homem se realiza enquanto tal. E é isso o que encontramos no livro de Harley Dolzane, um poeta que manifesta a essência da linguagem em sua poesia. Ele nos mostra que toda autêntica obra de arte é também pensamento.
            A obra I-NOME-NADA é um vasto percurso pelas questões que se dirigem ao homem no seu modo de ser e se realizar, mas sempre tendo como horizonte e força catalisadora a questão da linguagem. A obra não fala sobre a linguagem, ela põe em obra a essência da linguagem.
            Com a interpretação que fizemos de alguns versos do poema dedicado a M.M. e V.F.C., o leitor há de se sentir provocado a percorrer o modo como a obra elabora as questões. Em cada diferente poema, e seu modo próprio de pô-las em obra, encontra abrigo a esfera velada do poema que cada existência é. Em diálogo com os poemas aqui estampados, que cada leitor evoque e faça florescer o seu porvir no exercício do autodiálogo, percebendo-se como um dom da linguagem e a grande questão a ser percorrida.


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