Prefácio escrito por :
Lilia Silvestre Chaves
Poeta e Doutora em Estudos Literários pela UFMG
É
sempre uma alegria descobrir um poeta. Descobrir um poeta é reconhecer uma voz
sem mesmo saber que ela existia, mas experimentar a sensação de tê-la ouvido
antes. É ter, mais uma vez, a confirmação de que a expressão de Rilke – “cantar
é ser” – sempre será verdade.
E,
agora, o que dizer a um jovem poeta, que Rilke ainda não tenha dito em suas
cartas? Que o tempo mudou? Este poeta o sabe. Que seu tempo chegou? Os poetas
sempre chegam na sua hora de chegar e se fazem ouvir quando sabem o que dizer e
o como dizer. Posso, talvez, dizer-lhe que leia sempre mais e mais poemas e que
nunca se esqueça de que tudo ainda está à espera de ser dito.
Na
lição dos românticos alemães, somente um poeta pode interpretar poemas como um
verdadeiro crítico literário. O poeta é poeta como criador e é crítico como
poeta. Para Benedito Nunes, foram eles – os românticos – que uniram essas duas
ideias, o que redundou na admissão de um híbrido poeta-crítico ou de um
crítico-poeta. O que dizer, então, a um jovem que uma vez – na disciplina
Estudos do Poema, no Mestrado em Letras da Universidade Federal do Pará – veio
até mim para estudar poemas, compreendê-los e interpretá-los e que algum tempo
depois se revela poeta, assim de repente?
Eu
fico a me perguntar: se ensinar literatura é ensinar a ver, como foi ensinar a
olhos que sabiam que “a busca que se faz de si é sempre busca poética”, pois “o
verso é o ver só / e a espera de vir a ser. próprio e diverso”? Foi – respondo,
pensativa – uma espécie de reconhecimento prévio de sua voz, que só foi
desvelada quando li os seus poemas.
Neste
livro, em meio a novas alianças e jogos de palavras, misturam-se religiões e
tempos, vozes e silêncios, formas antigas e novas, algumas transgressões (como
os dois pontos no início do verso chamando uma atenção diferente para imagens
recriadas). Nele, o poeta transa com a palavra, abusa dela – pois para ele a
palavra, parceira verdadeira, é caprichosa, às vezes egoísta:
Vem cá, letra ordinária!
Vem que quero calar
os calores de tuas ancas
quero
pecar teus pecados de língua
Mas (uso palavras de Novalis) este mesmo poeta possui o sentimento
sutil do dedilhado da palavra, do seu compasso, do seu espírito musical, percebe
dentro de si a ação delicada da sua natureza interna e move a sua língua ou a
sua mão segundo essa percepção –
grave palavra-pétala indigitada
a ponta do dedo indica-
dor
–, espanta-se com seu poema e diz alegremente para si mesmo: “mais
um dia / e teu poema não murcha...”. E nunca murchará.
Da
poesia de Harley Dolzane fazem parte este “fechar de olhos profundo / a que
chamaremos Noite”, esta maneira de nomear o inominável, pois “[...] / para além
/ das travas e trevas / experimentar palavras / é ter na língua / gosto de ar. [p
o e m æ v e n t o]”; este fluir que atravessa o livro todo até evaporar, estes
pontos que unem e separam as palavras fazendo de um versos vários, e precisamos
voltar em diversas leituras que nos deixam “n.algum.lugar.d.impossível” – que é
a poesia, “e.terna.noite.fundamental”.
Lembrando as palavras de Mário Faustino – “na poesia encontra o
poeta, quando os deuses
estão ao seu lado, sua unidade existencial” –, quero
dizer ainda que os deuses estavam ao lado de Harley Dolzane, quando, na sua I nome nada [poesia], soube ver “o
outro lado, o avesso do texto da vida”, no silêncio da nomeação que indaga: “não
sermos é reflexo de quê?”
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