4.6.10

Existência: Travessia para Terceira Margem

Harley Farias Dolzane*



A obra de Guimarães Rosa parece desenvolver um percurso que, na multiplicação de braços, ramais, furos e tantas outras formas de afluências, está sempre apontando para um perigoso desembocar no oceano profundo das questões fundamentais onde o homem já está, desde sempre, mergulhado. [que é existir?] Percorrê-lo. Se, por um lado, há o constante risco de afogarmo-nos, é esse mesmo risco que possibilita o forjar-nos navegante.
A voz caudalosa que fala em Guimarães é “o rio por aí se estendendo grande, fundo, calado que sempre”[1] e, justamente, porque sempre cala é que nos provoca a toda hora a não ficarmos de “bubúia”, como que à margem do percurso que também nós somos. Como que à margem de nós próprios: num estado impossível que só o homem infeliz, sem nome, pode ser. A voz nos provoca a renunciar o marasmo de boiar, deserdá-lo em prol de “outra sina de existir”[2] [que é existir?], ser (com) o nosso pai.
Sem que se tenha pedido, “é de rio estar passando”[3], nos ensina a Morte e Vida Severina de João Cabral. Do mesmo modo, quer queira, quer não, o homem é do criar: ele é fecundo, ou seja, a felicidade lhe foi destinada – não por acaso fec- é a raiz comum de ambas as palavras e também das palavras fêmea e feto que é um desenvolver-se no ventre materno: rio de amor dentro de nós.  Assim é que “todos nós nascemos a bordo”[4], diria a Mensagem de outro grande navegante, Álvaro de Campos; quando nos damos conta, já estamos, tragicamente, no meio da viagem. Sem pedir, já somos Travessia. [que é existir?]. Para onde vamos?
A nenhuma parte. Ao todo. Entre uma margem e outra, entre as águas e o céu, Morte e Vida. Entre. De meio a meio, dentro da canoinha de nada, para dela não saltar, nunca mais, executando “a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio”[5], “rio-rio-rio”[6] que não pára... [que é existir?] Ao-longe, ao largo, ao que ainda vamos ser, sendo... o próprio: Terceira Margem.


* Graduando em Letras, Habilitação em Língua Inglesa, pela UFPA.  
[1] ROSA, João Guimarães. A terceira margem do rio. In: Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1962. p. 77.
[2] Ibdem. p. 78.
[3] MELO NETO, João Cabral de. Morte e vida severina e outros poemas para vozes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. p. 13.
[4] PESSOA, Fernando. Obra poética. 3ed. Rio de Janeiro: Nova Aguiar, 1995. p.
[5] ROSA, João Guimarães. A terceira margem do rio. In: Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1962. p. 78.
[6] Ibdem. p. 81.                                                         

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